Há pouco, e após me ter lembrado que não eram horas de transmissão de desgraças na televisão, liguei o bendito aparelho para desanuviar. Azar o meu de ter desligado a televisão da última vez na RTP1... Assim que liguei a televisão dei logo de caras com uma tourada: a 2.ª Grande Corrida RTP Algarve! Eu não a procurei, estava lá... sem aviso e sem “bolinha vermelha”, a prevenir quem não está disposto a assistir a actos violentos e degradantes. Mudei de canal. “Maravilha!” – pensei eu – É sempre bom ver e saber que continuamos a dar ênfase a um espectáculo em que se humilham e se condenam animais à morte e onde o entretenimento para as pessoas é essa mesma humilhação e sanguineira; e que ainda por cima o canal que pactua com este tipo infeliz de espectáculo é público e pago por todos os contribuintes. Existisse ainda a forca ou a fogueira da inquisiçao ou ainda tortura e era o que nos serviam em horário nobre!
Enfim, foi só mais uma das vezes em que não compreendi qual o interesse de passarem na televisão animais a serem judiados e feridos mortalmente com pessoas a rir e a aplaudirem, nem sequer como isto é autorizado por lei. Acho estranho, mas fazer o quê?..
Não quero abraçar a inglória luta pelos direitos dos animais, mas nunca é demais mostrar o meu descontentamento com a realização deste tipo infeliz de espectáculo e com a sua divulgação; nunca é demais relembrar que a maioria da população portuguesa, segundo as estatísticas, pensa desta forma ou nem sequer liga; e, o mais importante de tudo, relembrar que os animais já têm direitos, estabelecidos desde 1978 através da Declaração Universal dos Direitos do Animal, aprovada pela organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e pela Organização das Nações Unidas (ONU), onde, entre muitas coisas interessantes, se diz o seguinte:
- Artigo 10º alíneas a) e b): “Nenhum animal deve ser explorado para entretenimento do homem.” e “As exibições de animais e os espectáculos que se sirvam de animais, são incompatíveis com a dignidade do animal.”, sendo que no Artigo 2º se começa logo por referir que “todo o animal tem o direito de ser respeitado”.
- E nos artigos 11º e 13º que “todo o acto que implique a morte de um animal, sem necessidade, é um biocídio, ou seja, um crime contra a vida.” e que “as cenas de violência nas quais os animais são vítimas, devem ser proibidas no cinema e na televisão, salvo se essas cenas têm como fim mostrar os atentados contra os direitos do animal.”, respectivamente.
Desta forma, penso que é possível compreender a minha incompreensão.
B. Borges
Já agora que falo nisto, lembrei-me de um conto de Miguel Torga, no qual o autor se coloca por detrás dos olhos de um touro, chamado Miura, e descreve de uma forma muito interessante a estranha experiência a que tantos e tantos touros já foram sujeitos. Uma excelente leitura, sobretudo para aqueles que têm maiores dificuldades em fazer o mesmo que o autor: ler o pensamento do animal.
“MIURA
Fez um esforço.
Embora ardesse numa chama de fúria, tentou refrear os nervos e medir com a calma possível a situação.
Estava, pois, encurralado, impedido de dar um passo, à espera de que lhe chegasse a vez!
Um ser livre e natural, um toiro nado e criado na lezíria ribatejana, de gaiola como um passarinho, condenado a divertir a multidão!
Irreprimível, uma onda de calor tapou-lhe o entendimento por um segundo.
O corpo, inchado de raiva, empurrou as paredes do cubículo, num desespero de Sansão.
Nada.
Os muros eram resistentes, à prova de quanta força e quanta justa indignação pudesse haver.
Os homens, só assim: ou montados em cavalos velozes e defendidos por arame farpado, ou com sebes de cimento armado entre eles e a razão dos mais…
(...)Três pancadas secas na porta, um rumor de tranca que cede, uma fresta que se alargou, deram-lhe num relance a explicação do enigma da agressão: chegara a sua vez.
Nova picada no lombo.
- Miura! Cornudo!
Dum salto todo muscular, quase de voo, estava na arena.
Pronto!
A tremer como varas verdes, de cólera e de angústia, olhou à volta. Um tapume redondo e, do lado de lá, gente, gente, sem acabar.
Com a pata nervosa escarvou a areia do chão. Um calor de bosta macia correu-lhe pelo rego do servidoiro. Urinou sem querer.
Gritos da multidão.
Que papel ia representar? Que se pedia do seu ódio?
Hesitante, um tipo magro, doirado, entrou no redondel.
Olhou-o a frio. Que força traria no rosto mirrado, nas mãos amarelas, para que se atreve assim a transpor a barreira?
A figura franzina avançou.
Admirado, Miura olhava aquela fragilidade de dois pés. Olhava-a sem pestanejar, olímpica e ansiosamente.
Com ar de quem joga a vida, o manequim de lantejoulas caminhava sempre. E, quando Miura o tinha já à distância de um arranco, e ainda sem compreender olhava um tal heroismo, enfatuadamente, o outro bateu o pé direito no chão e gritou:
- Eh! boi! Eh! toiro! A multidão dava palmas.
- Eh! boi! Eh! toiro!
Tinha de ser. Já que desejavam tão ardentemente o fruto da sua fúria, ei-lo.
Mas o homem que visou, que atacou de frente, cheio de lealdade, inesperadamente transfigurou-se na confusão de uma nuvem vermelha, onde o ímpeto das hastes aguçadas se quebrou desiludido.
Cego daquele ludíbrio, tornou a avançar. E foi uma torrente de energia ofendida que se pôs em movimento.
Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante, escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora. Os cornos ávidos, angustiados, deram em cor.
Mais palmas ao dançarino.
Parou. Assim nada o poderia salvar. À suprema humilhação de estar ali, juntava-se o escárnio de andar a marrar em sombras. Não. Era preciso ver calmamente. Que a sua raiva atingisse ao menos o alvo.
O espectro doirado lá estava sempre. Pequenino, com ar de troça, olhava-o como se olhasse um brinquedo inofensivo.
Silêncio.
Esperou.
O homem ia desafiá-lo certamente outra vez.
Tal e qual. Inteiramente confiado, senhor de si, veio vindo, veio vindo, até lhe não poder sair do domínio dos chifres.
Agora! De novo, porém, a nuvem vermelha apareceu.
E de novo Miura gastou nela a explosão da sua dor.
Palmas, gritos.
Desesperado, tornou a escarvar o chão, agora com as patas e com os galhos. O homem!
Mas o inimigo não desistia. Talvez para exaltar a própria vaidade, aparentava dar-lhe mais oportunidades. Lá vinha todo empertigado, a apontar dois pequenos paus coloridos, e a gritar como há pouco:
- Eh! toiro! Eh! boi!
Sem lhe dar tempo, com quanta alma pôde, lançou-se-lhe à figura, disposto a tudo.
Não trouxesse ele o pano mágico, e veríamos!
Não trazia. E, por isso, quando se encontraram e o outro lhe pregou no cachaço, fundas, dolorosas, as duas farpas que erguia nas mãos, tinha-lhe o corno direito enterrado na fundura da barriga mole.
Gritos e relâmpagos escarlates de todos os lados.
Passada a bruma que se lhe fez nos olhos, relanceou a vista pela plateia. Então?!
Como não recebeu qualquer resposta, desceu solitário à consciência do seu martírio. Lá levavam o moribundo em braços, e lá saltava na arena outro farsante doirado.
Esperou.
Se vinha sem a capa enfeitiçada, sem o diabólico farrapo que o cegava e lhe perturbava o entendimento, morria.
Mas o outro estava escudado.
Apesar disso, avançou. Avançou e bateu, como sempre, em algodão.
Voltou à carga.
O corpo fino do toureiro, porém, fugia-lhe por artes infernais.
Protestos da assistência.
Avançou de novo. Os olhos já lhe doíam e a cabeça já lhe andava à roda.
Humilhado, com o sangue a ferver nas veias, escarvou a areia mais uma vez, urinou e roncou, num sofrimento sem limites. Miura, joguete nas mãos dum Zé-Ninguém!
Num ímpeto, sem dar tempo ao inimigo, caíu sobre ele. Mas quê! Como um gamo, o miserável saltava a vedação.
Desesperado, espetou os chifres na tábua dura, em direcção à barriga do fugitivo, que arquejava ainda do outro lado. Sangue e suor corriam-lhe pelo lombo abaixo.
Ouviu uma voz que o chamava. Quem seria? Voltou-se. Mas era um novo palhaço, que trazia também a nuvem, agora pequena e triangular.
Mesmo assim, quase sem tino e a saber que era em vão que avançava, avançou.
Deu, como sempre na miragem enganadora.
Renovou a investida. Iludido, outra vez. Parou.Mas não acabaria aquele martírio? Não haveria remédio para semelhante mortificação?
Num último esforço, avançou quatro vezes. Nada. Apenas palmas ao actor.
Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento?
Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque. Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?!
Calada, a lâmina oferecia-se inteira. Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume."
BICHOS
Miguel Torga
Obrigado pela leitura,
B. Borges
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